quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Raiva: aprenda a lidar com ela Esse sentimento tem um espaço importante na vida. Quanto mais estudarmos o fenômeno e entendermos como ele se forma e aproxima, melhor o combateremos Texto: Ivonete Lucírio




Será que estamos ficando mais raivosos? Dependendo do ambiente e de como se observa o assunto, a resposta pode ser sim. “De modo geral, a raiva é uma consequência direta do estresse que vivemos. À medida que a pressão aumenta na sociedade, também a raiva surge com maior frequência”, responde a psicóloga Marilda Novaes Lipp, presidente do Instituto de Psicologia e Controle do Stress (IPCS), de São Paulo, e autora do livro Stress e o Turbilhão da Raiva (editora Casa do Psicólogo). Um item a mais, contudo, parece engrossar esse caldo: em tempos de redes sociais, e-mails e SMS, é possível expressar qualquer sentimento sem olhar nos olhos de ninguém. É a chamada e-raiva, ou e-anger, termo cunhado pela psicóloga americana Louise Doncaster, em 2003. “A tecnologia moderna tirou o olho no olho”, diz Marilda. E isso diminui o filtro na hora de dizer aquelas verdades iradas – sendo elas justas ou não.
Seria ótimo mandar um recado anônimo para seu chefe bem naquele dia em que ele tirou toda sua moral durante uma reunião? Tem um perfil de Twitter para isso: http://abr.io/bossbitching. Em outro endereço eletrônico, pode-se simplesmente odiar coisas: www.hatebook.org. Isso tudo sem maiores consequências. Exceto o fato de que a própria tecnologia pode causar ataques de ira. Uma pesquisa realizada na Inglaterra demonstrou que 61% dos usuários de internet costumam xingar quem está por perto – incluindo os inocentes animais de estimação – quando a página que se tenta acessar demora a carregar. A internet, claro, não criou a raiva. É apenas mais uma forma para externá-la.
Vale lembrar que a emoção faz parte do rol de ferramentas primárias com as quais todo ser humano já nasce, juntamente com o medo, a alegria, a tristeza e a surpresa. São ferramentas primárias, diga-se, porque necessárias à sobrevivência. Na época das cavernas, a fúria era tão importante quanto a machadinha de pedra polida forjada para arrumar comida, e não se transformar em uma. Ainda hoje ajuda a matar um leão por dia. Ou dois, três... Primitiva como é, muitas vezes essa emoção surge como uma reação biológica. Os hormônios do estresse – ele mais uma vez – são liberados no sangue. A respiração e os batimentos cardíacos se aceleram. As pupilas dilatam e a corrente sanguínea se concentra ao redor dos músculos e longe do sistema digestivo, dando a impressão de que o estômago está enrolado em papel filme. “Esse estado físico e emocional serve para mobilizar o sistema nervoso para um determinado objetivo, aumentando o que chamamos de fitness do organismo. Ou seja, a pessoa passa a ter maior chance de êxito num contexto ambiental específico”, explica o psiquiatra Márcio Bernik, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). E esse contexto pode ser o mais variado, passando pela necessidade de mostrar as garras para se sair bem num emprego, enfrentar quem ameaça aqueles que você ama ou quem está ocupando um espaço que julga ser seu.
O bom da modulação
Ninguém está dizendo que a raiva precisa ser engolida. Até porque ela pode explodir em gastrite, hipertensão e outros problemas. Para a medicina tradicional chinesa, a raiva contida ou, ao contrário, expressa o tempo todo tem impacto direto no fígado. Daí porque cuidar do órgão deixa a pessoa mais tranquila. E vice-versa. É preciso deixar a raiva ir escapando aos poucos para, por mais paradoxal que pareça, não perder a cabeça num acesso de fúria violento.
O limite para diferenciar o que é a raiva normal da que se torna uma doença é que são elas. No Ambulatório Integrado de Transtornos do Impulso do HCFMUSP, há uma espécie de nota de corte. Para definir os casos que merecem atendimento urgente, levam-se em conta a frequência das crises (de dois a três ataques de raiva por semana, por pelo menos três meses seguidos), a desproporção entre o que causou o destempero e o tamanho da reação, e os sintomas associados, como suor, formigamento, tremores e taquicardia. Pacientes nessas condições recebem antidepressivos e terapia em grupo na tentativa de não ser mais vítima do pavio curto. De qualquer forma, há muito tempo o tema provoca reflexões. O filósofo grego Aristóteles tinha uma receita de como ficar irritado sem perder a linha em seu livro Ética a Nicômano: “Qualquer um pode zangar-se, isso é fácil. Mas zangar-se com a pessoa certa, na medida certa, na hora certa, pelo motivo certo e da maneira certa, isso, sim, é difícil!”
No cérebro, a raiva passa por um processo de modulação. No primeiro instante vem a ativação, que faz disparar o impulso para a luta. Depois, a moderação, artifício que ajuda a dar a devida importância ao problema. “É nesse momento que avaliamos os dados da realidade, conferindo ao fato a importância devida, sem supervalorizá-lo ou subestimá-lo”, diz a psicóloga Lana Harari, de São Paulo.
“Outro dia, eu estava andando no estacionamento do supermercado para pegar meu carro, depois de ter feito zilhões de coisas o dia todo, e uma mulher veio na contramão. Uma senhora que estava perto de mim comentou com o filho: ‘Só podia ser mulher mesmo!’ A observação me deixou profundamente irritada”, conta a relações públicas carioca Danielle Carvalho. “Poxa vida, como uma mulher pode falar isso de outra nos dias de hoje?! Quase fui tirar satisfação, mas me perguntei se valia mesmo a pena. Então tentei imaginar uma hipótese engraçada: ela fez aquela crítica apenas para agradar ao filho machista, um solteirão que vivia na barra da saia da mãe. Acabei rindo”, completa. Danielle passou por um processo de modulação, que envolveu a razão antes de partir para a ação, atitude saudável quando alguém se depara com uma situação que faz o sangue ferver. Mas ela não foi sempre assim. Era do tipo tempestuoso.
Quando tinha 10 anos, partiu para cima de um tio porque ele ameaçava bater no primo. Com 25 anos, começou a fazer terapia cognitivo-comportamental logo depois de ser abandonada pelo namorado e descobriu que mergulhar na raiva simplesmente não valia a pena. “Entendi que fazia parte de um processo de aceitação das coisas e que muitas, infelizmente, não têm como mudar”, conta ela.
Por certo, é absolutamente normal sentir os ventos fortes que agitam a atmosfera de uma relação ou situação. E nem sempre é ruim soltar a voz e disparar raios e trovões. Como toda emoção (palavra vinda do latim, “mover-se”), os sentimentos nos tiram de um estado de letargia e fazem tomar alguma atitude. “A ira nos dá coragem e vigor com rapidez, impulsiona a pessoa a tomar uma decisão”, concilia Marilda Novaes Lipp. Outra função é sinalizar ao outro que algo não vai bem. “Sem esse recurso, o indivíduo se torna frágil”, diz a psicóloga Brenda Gottlieb, de São Paulo.
No entanto, como se percebe essa manifestação de alta temperatura não é unanimidade em todas as culturas. Há especificidades, como mostra um estudo realizado na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Por exemplo: uma pequena dose desse sentimento ajuda a alcançar o objetivo se na mesa de negociações estiverem europeus e americanos. Mas asiáticos não entram nessa linha. O experimento usou voluntários da própria universidade. Metade era europeia ou descendente de europeus, e a outra metade, asiática ou seus descendentes. Cada um participou de uma negociação por meio de um computador para vender um celular.
Eles acreditavam estar negociando com outra pessoa, porém estavam enfrentando um programa de computador. Em determinados momentos, o “outro negociador” se mostrava hostil. Os europeus ou seus descendentes tendiam a fazer mais concessões a um oponente raivoso que os asiáticos.
Dominada, mas não ignorada
É muito pouco provável passar pela vida sem dar um piti. Mirela Alves, secretária executiva paulista, tinha explosões constantes. Na última delas, há cerca de um ano, estava parada no estacionamento de um shopping onde faz ginástica, falando ao celular, e outra mulher deu farol alto para ela andar. Assim que estacionou, desceu do carro e foi tirar satisfação. Quando viu que a mulher estava acima do peso, a agrediu: “Você deveria ir para a academia em vez de irritar os outros!” No final do ano passado, começou um novo relacionamento. O namorado é o oposto dela, a calma em pessoa. Então Mirela percebeu que tinha de mudar, até porque já tinha se dado mal várias vezes por causa de seus ataques. Começou a praticar ioga e está tomando florais de Bach. Aprendeu ainda um mantra para os momentos de clima mais tenso: “Que nós jamais nos desentendamos, que haja paz, paz, paz”.
Quando a cólera vem, deve ser dominada, mas não ignorada. Nem tente esmurrar almofadas para descontar a ânsia veemente. O psicólogo Jeffrey Lohr, da Universidade do Arkansas, nos Estados Unidos, estudou durante dez anos essa técnica e concluiu que, quanto mais raiva você sente, mais raiva você sente. É preciso lidar com a realidade como ela se apresenta, mostrando à raiva quem manda em quem. Respire para oxigenar o cérebro e relaxar a musculatura; tente lembrar que nem tudo é uma questão pessoal; e, se possível, saia de perto da situação que o deixou nervoso. O princípio da realidade, postulado por Sigmund Freud, diz que a realidade nem sempre gratifica, porque exige que nos adaptemos às dificuldades. Brigar com o chefe, o marido, o amigo ou o filho é, às vezes, inevitável. Se nos lembrarmos de manter o coração leve, no entanto, logo a agitação acompanhada de relâmpagos, trovões, chuva e granizo passa, e vem a bonança.

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