Grandes Temas
E a grama do vizinho...
A mania do perfeccionismo pode atravancar sua vida. Preste atenção e você verá que boa parte de seus sonhos só existe para satisfazer um modelo idealizado inatingível. Tirar do caminho essa casca de banana a tempo é nossa única saída.
texto Liane Alves
Todo publicitário sabe disso: somos basicamente movidos pela inveja. O desejo que dispara nossa vontade de consumir é o de querer ter o que outro tem, seja o carro do ano, a barriga tanquinho ou a família alegre que almoça ao redor de uma macarronada fumegante. Ora, ninguém vai invejar algo fácil de obter – porque, se é fácil, presume-se que todo mundo já tenha. Então, oferece-se o que é mais difícil de conseguir: o mais perfeito, o mais feliz, o mais bonito, amoroso, elegante ou sensual, enfim, o “mais mais” de qualquer coisa que possamos invejar. É assim que somos presos pelo anzol: não compramos apenas um produto, mas todo um modelo de beleza, status e perfeição que vem associado a ele. “Para nos aproximarmos do que é oferecido pela mídia, iremos comprar tudo ou fazer de tudo que nos dê a impressão de sermos tão perfeitos quanto o que vemos numa televisão ou numa revista. Sem parar para pensar no que estamos realmente fazendo conosco”, diz Regina Favre, psicoterapeuta, pesquisadora dos processos cognitivos e alguém muito atento ao sistema opressivo que traz dezenas de clientes ao seu consultório.
Nesse sentido, somos todos perfeccionistas, inclusive eu e você, que tateamos por uma vida mais simples e natural mas que ainda vivemos sob a influência da publicidade, da mídia e de muitos dos padrões vigentes. Como todo mundo, podemos estar ralando para cumprir modelos impostos sem perceber. E ralando muito, posto que a perfeição é mercadoria escassa nesse mundo naturalmente imperfeito. Além disso, ninguém vai nos contar que realizar o sonho de manter todas as áreas da vida sob controle é impossível, apesar de todo o esforço. Um corpo certinho não vai garantir relacionamentos plenos e amorosos, um emprego ideal ou a casa na praia não são sinônimos automáticos de felicidade. Este é o mecanismo perverso dessa história: a perfeição, mesmo quando é atingida, só nos chega aos pedaços.
Arapuca esperta
Esse desejo subliminar de perfeição alimenta toda a estrutura econômica e social da nossa cultura. Mais e melhor é o grande produto oferecido por um sistema que ao mesmo tempo que nos apavora com o medo de envelhecer, de sofrer, de ficar feio, ultrapassado ou gordo nos propõe soluções instantâneas para resolver esses “problemas”.
“É uma configuração de terror e alívio. Somos estimulados, por exemplo, a ter pavor da celulite, do olho caído, do músculo flácido, enfim, de tudo que indique a passagem do tempo, mas ao mesmo tempo nos são oferecidas academias de musculação, cremes maravilhosos, plásticas”, diz Regina Favre. “Hoje, as academias estão abertas até as 4 da manhã para que as pessoas possam frequentá-las. É uma luta desesperada para manter a forma de acordo com um determinado padrão. Procuramos por um corpo idealizado, perfeito, não um corpo sentido, vivido”, diz ela. Podemos estar nele e nem sequer percebê-lo, como se ele fosse apenas uma roupa bonita que se veste para, basicamente, mostrar para os outros.
Dentro do pacote
Segundo Regina Favre, duas doenças contemporâneas testemunham nossas reações diante desse desafio da perfeição: a síndrome do pânico e a depressão. “Se prenuncio que não vou conseguir atender ao padrão de exigências estabelecido, começo a entrar em ansiedade e, depois, em desespero, em aflição: é o pânico que chega. E se, ao contrário, dou conta do fracasso em cumprir o que é proposto idealmente pelo mercado, posso ser tomado pela depressão.”
E por que será que desejamos a perfeição de maneira tão obsessiva? “Há o mito construído por essa mesma estrutura mercadológica de que se não formos perfeitos, jovens e belos seremos excluídos. Portanto, temos medo da exclusão, da obsolescência. É esse o fantasma que nos ameaça: sermos jogados fora do mercado, seja profissional, seja sexual ou produtivo.”
E, mesmo quando atingimos as altíssimas metas de perfeição que estabelecemos para nós, o resultado pode não ser aquele que esperamos. “Atendi um jovem executivo, ótimo profissional, com competência em várias áreas, financeiramente realizado que, casado com uma mulher tão bonita quanto ele, não conseguia ter relações sexuais com ela. Exatamente porque no amor vinha embutido o que ele mais temia na vida: a possibilidade do sofrimento, da insegurança, do fracasso e do risco”, diz Regina.
Esquecemos algo fundamental: que sofrer, arriscar-se sem garantias, sentir-se inseguro e provar sentimentos de perda ou falta fazem parte da riqueza de experiências que a vida pode nos proporcionar. “Existe toda uma cultura, e uma indústria, do antissofrimento. Há uma condenação geral dos processos naturais da existência, como o envelhecer, por exemplo. Enfim, excluem-se as possibilidades que pertencem ao viver.” Evita-se ao máximo vivenciar experiências que possam trazer o imprevisível, o inseguro ou o sofrimento – como o amor e a entrega, por falar nisso.
O resultado? Ficamos cada vez mais hesitantes em experimentar verdadeiramente o sabor da vida, com suas disparidades, imprevisibilidades, erros e acertos, bobagens assumidas e não assumidas. Ao optar pelo controle que vem atrelado ao desejo de perfeição, perdemos cada vez mais o aprendizado e o encanto dos enganos que a existência pode nos oferecer.
Mas vem aí uma boa notícia: uma vigorosa contracorrente a esse tipo de pensamento já está presente há uns 30, 40 anos na sociedade. “Ela questiona e rejeita essa configuração de estilos de vida rigidamente perfeitos. Propõe um modo de viver mais respeitoso às particularidades do indivíduo e a nossa integração com a natureza. Emergem novos tipos de valores que se distanciam do modelo da perfeição e falam de novas posturas que incorporam conceitos como o desapego e a noção de impermanência, por exemplo. A sociedade de consumo não é mais o padrão ideal.”
Há igualmente uma recusa em usar um único parâmetro de beleza ou daquilo que se convenciona chamar de sucesso ou de felicidade. Essa nova atitude começa com o respeito ao próprio corpo. “Tomar conta da configuração de si é um ato político”, afirma Regina Favre. Ser responsável pela própria saúde, pelos alimentos que consumimos, pelos ritmos internos e necessidades pessoais é uma nova posição de vida, mais consciente e individualizada, e não mais só coletiva e imposta.
Ainda bem. Não deixa de ser um grande alívio constatar que fazemos parte desse outro movimento e que há uma benvinda transição em curso.
E começa a revolução
Se há uma pessoa que sempre observou, com perfurantes críticas, o que nos é proposto pela família, cultura, sociedade e também pelo mercantilismo, esse alguém é José Ângelo Gaiarsa. Psiquiatra, trouxe questionamentos profundos, expressos em vários livros, sobre nosso modo de viver, nossas escolhas e padrões de comportamento. Conhecedor da fisiologia do corpo humano, em especial do cérebro, coloca em dúvida nossa capacidade de fazer julgamentos justos sobre os parâmetros que usamos ao avaliar a perfeição. Isto é, estalamos nosso chicotinho à toa quando decidimos que não somos perfeitos e que isso é suficiente para nos condenar à desgraça. “Estamos submersos em um mundo de palavras e conceitos que não têm valor real e que só nos trazem infelicidade”, diz o doutor Gaiarsa. Para ele, a maioria dos nossos julgamentos não resiste a um simples exame de lógica: são superficiais, enganosos e altamente falhos. Em outras palavras, nossas conclusões sobre o que é ou não é perfeito não são nada confiáveis. “Não temos condição de nos julgar, ou de nos condenar, com isenção. Tenho alergia a palavras como ideias, conceitos, julgamentos que não dizem nada e só aumentam a nossa confusão. Já o corpo não mente jamais”, diz ele, que, com 90 anos, continua com o raciocínio tão rápido quanto o de um adolescente.
Segundo Gaiarsa, a grande revolução começa ao sentirmos mais o corpo, ao termos um contato mais profundo e próximo com ele. Isso significa respirar melhor, movimentar- se mais livremente e de forma não repetitiva, experimentar toda a gama de sensações que os sentidos podem nos oferecer. O sentimento de vitalidade, autonomia, autoapreciação e bem-estar experimentado na posse do próprio corpo pode nos tornar menos vulneráveis a modelos externos e a comparações.
Com esse conhecimento, abre-se o espaço para o nascimento de uma nova consciência, mais independente e autônoma. E Gaiarsa explica como e por quê. Segundo pesquisas recentes feitas por ele, os três cérebros – reptílico, límbico e cortical – que constituem nosso sistema cerebral, e que foram se formando ao longo de nossa evolução peixe-anfíbio-mamífero, se alimentam do oxigênio de forma diferente. O cérebro reptílico, como o dos próprios répteis, consome muito pouco oxigênio; o límbico, responsável por nossas emoções, também. É o neocórtex cerebral, o mais recente em termos evolucionários e também o responsável por nossa capacidade de pensar, avaliar ou julgar, que consome mais oxigênio dos três. “Isso significa que, ao respirarmos mais profundamente, o córtex se ilumina: o raciocínio torna-se claro, as conexões cerebrais se ampliam”z, afirma. É como trazer gasolina azul para nossa capacidade de pensar. E a conclusão de Gaiarsa é espantosa. “Se respiramos mal, estamos alimentando apenas nossos cérebros mais primitivos. Ficamos reféns do medo e da agressividade, reações básicas do mecanismo de sobrevivência associadas ao cérebro reptílico, e das emoções negativas geradas no límbico, como inveja, medo, competição.” Ora, são essas as emoções que nos colocam a serviço de modelos impostos pela sociedade. É por competitividade que lutamos por um suposto território, é por inveja que consumimos. E somente a consciência, formada no neocórtex cerebral, pode nos livrar disso. “Não temos ideia de como a simples respiração pode nos ajudar a nos libertarmos dessas emoções e do domínio que elas nos impõem”, diz limpidamente o pesquisador.
Juro que nunca tinha pensado nisso. Respirar melhor traz mais clareza de raciocínio: podemos ver mais nitidamente onde estamos amarrando nosso burro. E, com isso, talvez possamos enxergar melhor os esquemas furadíssimos em que às vezes nos metemos. Só por essa descoberta, o doutor Gaiarsa já merecia um beijo.
Diagnósticos por cores
Outras áreas da medicina também estão procurando sair do mundo dos conceitos e dos modelos rígidos preestabelecidos. Na Unifesp, em São Paulo, mais precisamente no Centro de Estudos do Envelhecimento, os diagnósticos, realizados por uma equipe transdisciplinar que inclui várias especialidades, são feitos por cores. Cada profissional faz sua avaliação, de acordo com sua especialidade, e a expressa usando giz de cera colorido. Depois, os participantes trocam entre si os papéis onde usaram os tons coloridos para tentar chegar a um padrão de avaliação e a um diagnóstico comum. Os significados atribuídos às cores seguem os padrões elaborados pelo escritor alemão Goethe, no século 19, e que ainda hoje são utilizados pela medicina antroposófica, por exemplo. A ideia tanto serve para ultrapassar as discussões intermináveis, onde cada um usava a linguagem específica da sua área e que não era comum a todos, como emprega um outro hemifério cerebral, o direito, para elaborar um diagnóstico.
Isso não quer dizer que o hemisfério cerebral esquerdo, responsável por lógica, comparação e raciocínio, não seja importante e não vá ser usado em etapas posteriores. É que simplesmente não está com essa bola toda que atribuímos a ele. “É uma avaliação mais completa”, afirma o médico homeopata Fernando Bignardi, responsável por esse centro de estudos e pesquisas da Unifesp.
As avaliações do paciente também incorporam o modelo quântico trazido pelo físico indiano Amit Goswami: o protocolo terapêutico vai levar em conta o homem em sua dimensão física, metabólica, vital, mental (incluindo a parte emocional e psicológica) e supramental (espiritual). Nada de modelos unidimensionais e unirreferenciais. A meditação é fortemente incentivada entre os pacientes, justamente para que possa ser facilitada a liberação de padrões rígidos de pensamento e, com isso, de comportamento. Inclusive vários estudos foram realizados sobre esses efeitos na população mais idosa. A perfeição não é mais a única meta, mas o equilíbrio, a harmonia e o bem-estar.
Sinal de que o mundo está mudando mesmo. Até em áreas anteriormente tão resistentes a outros saberes quanto a medicina.
Quando vale a pena
Depois que limpamos bem esse terreno, já é possível ver que geralmente usamos o desejo de perfeição da forma errada, por motivos fúteis, e para atender necessidades estimuladas por uma estrutura mercadológica de consumo. Mas depois de ver tudo isso, agora sim, podemos dizer que esse desejo também tem a sua utilidade. Os grandes gênios da humanidade se alimentaram dele: Michelangelo, Da Vinci, Einstein. Mas essa dedicação completa à perfeição estava a serviço da arte, da ciência e, para resumir a história, da humanidade. Eles podem ter estropiado sua vida pessoal por isso, inclusive. Também nada garante que fossem mais felizes ou realizados atendendo a esse chamado. Mas a verdade é que, em vez de procurarem unicamente sua felicidade individual, colocaram suas aptidões e talentos a serviço de algo maior, às vezes em detrimento de sua saúde, sanidade ou realização afetiva. Almejar a perfeição, portanto, pode nos levar a grandes realizações e feitos, a um aperfeiçoamento constante, até a obtenção de uma qualidade exemplar. Mas por vezes o preço é alto.
“Sede perfeitos, como o vosso Pai do céu é perfeito”, nos diz o evangelho. E onde o Criador seria perfeito? “Na generosidade”, continua o evangelista Mateus. Para mim é uma grande supresa essa segunda colocação: quase nunca ninguém lembra que tipo de perfeição nos é pedida. É um simpático motorista de táxi que me faz recordar isso quando digo a ele que estou escrevendo uma matéria sobre o tema.
Em vez de apresentar um modelo rígido e acabado de perfeição, sucesso e beleza, as palavras de Cristo propõem, ao contrário, um exercício de humanidade, naquilo que o ser humano tem de melhor: sua capacidade de amar, perdoar, ter compaixão e praticar a generosidade – inclusive consigo mesmo, no caso de erro e falta. Por isso, o desejo de perfeição não é, por si só, ruim. Não se encarado dessa maneira generosa. Nossa grande questão é, e sempre vai ser, onde vamos colocar esse desejo.