quarta-feira, 11 de março de 2009

Bagunça amiga. Porque um pouco de caos é legal.

Desordem e progresso.
O sonho de viver em casas clean e organizadas, ter metas rígidas e conseguir manter nossos relacionamentos sob controle está com os dias contados? Veja (em uma matéria bem organizadinha) que um pouco de caos pode ser benéfico em nossa vida.

texto Liane Alves (site:
www.revistavidasimples.com.br)

Caixas de cerejas estão sendo descarregadas na cozinha e se amontoam pelos cantos. Sobre as duas mesas grossas de madeira, três queijos de ovelha, dois de cabra, garrafas de vinho a serem degustadas no almoço. Nos ganchos pendentes do teto, réstias de cebola e alho, linguiças, tachos de cobre, panelas de ferro. Prateleiras abrigam potes de cerâmica de matizes esmaecidos cheios de colheres de pau, desgastadas pelo tempo. Nada mais aleatório e, paradoxalmente, nada tão sublime. Cenas como essa podem ser presenciadas em cada canto da Itália rural, com suas casinhas vermelhas e seus janelões verde-água, sobrados ocre com venezianas azulão, palacetes rosa-forte com portões laranja. Mais do que ninguém, os italianos conhecem como transformar o caos numa experiência estética deslumbrante. O país inteiro é uma palheta e a beleza nasce da diversidade, espontaneidade e criatividade proporcionadas por um amor apaixonado por tudo aquilo que é não estruturado, imprevisível e, de preferência, longe da ordem convencional. Isto é, pelo que chamamos de bagunça.
Mas tem um segredinho aí. É óbvio que essa não é uma bagunça comum e que há algo especial nela. Ela nasce da flexibilidade diante da desordem do cotidiano, da aceitação da imperfeição, de um jeito mais natural de viver. Certamente é uma desordem com raízes humanistas, que está ligada a valores como aproveitar bem a vida sem se preocupar demais e não se importar muito com o que está desgastado ou fora de ordem. São lições vindas de uma compreensão mais profunda sobre a fugacidade da existência e a relatividade das coisas. Aprender como deixar o caos entrar sem se perder nele pode trazer novas. E, talvez, mais felicidade.
Mas é melhor ser bagunceiro? Não, embora os bagunceiros pareçam mais simpáticos (principalmente quando não se convive demais com eles). Temos a tendência de nos enternecer com quem não tem a vida estruturada. De alguma forma, nos parece mais humano, mais pertencente a este mundo imperfeito. Isso acontece porque vivemos debaixo da ordem e da linearidade. “Durante a Renascença, tivemos o desenvolvimento equilibrado e integrado do homem, que contemplava tanto as atividades do lado esquerdo (lógica, raciocínio, hierarquia) quanto das do lado direito (criação, experiência estética, contemplação). De pois essa vivência se dividiu: a ciência dominou a parte lógica e a religião ficou com o sagrado e o artístico”, diz a consultora empresarial Dulce Magalhães, dou tora em filosofi a e autora do Manual de Disciplina para Indisciplinados.
E tem gente que leva a ordem muito a sério. “Um dia, fui à casa de um amigo, um grande diretor de arte de uma agência publicitária, e descobri que o interior de sua geladeira estava todo diagramado: ovos e verduras ao lado de potinhos e produtos importados, caixinhas milimetricamente dispostas perto de salsões e tomates”, conta a publicitária Maria Patrícia de Assis. “Quando tirava algo do lugar, ele dava um passinho para trás para ver como iria rearranjar o espaço.”
Tanto o excesso de ordem como a bagunça exagerada podem indicar distúrbios. “A neurose significa que temos uma deformação ao olhar para a realidade. Por algum motivo, a interpretamos de forma desequilibrada, gerando problemas para nós mesmos e os outros”, afirma a psicóloga Yooko Suyama, psicóloga e diretora de desenvolvimento humano da Associação Viva e Deixe Viver. Mas, como já temos uma pressão social para nos encaixarmos dentro de uma forma, que após a revolução industrial nos exige ordem, uniformidade e perfeição, o ideal é arejar um pouco e integrar um pouco mais de caos e desestruturação em nossa vida.
Gente baguncada é mais criativa? Depende. O melhor é buscar o equilíbrio entre o cálculo e a bagunça. “Todo planejamento é também uma expectativa. Isso significa que há algo que se espera que ocorra e, portanto, há pouco espaço para a percepção daquilo que não está previsto. A criatividade exige uma percepção expandida, um pensamento lateral, que não é o linear e já define que tal causa terá tal efeito”, diz a consultora Dulce Magalhães. “A melhor forma de se organizar é colocar-se num campo intencional, escolhendo o que se deseja alcançar, mas sem enquadrar demais os processos e métodos, buscando construir o processo à medida que o mesmo ocorre. É claro que tudo depende de que propósito estamos falando, pois um processo industrial exige um planejamento nos mínimos detalhes, mas a vida é um campo mais vasto e há muito que simplesmente não pode ser previsto”, afirma.
A artesã e ex-professora de educação artística Angélica Rodrigues sabe bem disso. Mineiramente, dispõe suas peças de artesanato por toda a casa (um apartamento de sala e quarto) à espera de inspiração para terminá-las. Elas ficam, então, no aguardo da decisão de sua dona. No momento em que a entrevistei, ela estava com bolas de isopor à espera dos fitilhos certos para o seu arremate, um presépio que aguardava as fi gurinhas de Jesus, José e Nossa Senhora, guirlandas de tecido prontas para receberem rendinhas e bordados e vários bonequinhos na expectativa de decoração com lantejoulas e vidrilhos. Fosse apenas isso... Espalham-se também pela casa caixas de tudo o que ela usa em seu trabalho: botões, cordões, novelos, linhas, tecidos, colas, tintas, pincéis, lápis de cor, canetinhas. “Já que não posso evitar as caixas, elas ficam todas aparentes, mas enfeitadinhas. Decoro cada uma delas”, diz, demonstrando seu amor imenso por esse universo multicolorido e (aparentemente) caótico. “Entre uma casa bonitinha e sempre em ordem e o prazer de trabalhar, optei pelo prazer de trabalhar.” Não existe resposta para esse argumento, existe?
Angélica também diz que essa vida a faz feliz. Diante da multiplicidade de suas caixas e sua organização caótica, ela aprendeu a ter paciência consigo mesma (sempre se dá 15 minutos de prazo até achar alguma coisa...), bom humor e fl exibilidade diante dos seus limites e a ter a grande generosidade de se perdoar. “Todo mundo erra e tem defeitos. Não existe perfeição. Quando entendo e perdoo a mim mesma, fica mais fácil perdoar os outros.” Essa tolerância se estendeu a algumas de suas peças. “Outro dia fiz um anjo tortinho e não quis arrumá- lo. Preferi deixá-lo assim. A imperfeição o humaniza. Ela abre espaço para o erro, para o que escapuliu da ordem, do rigor”, diz. Para ela, não adianta insistir demais com a perfeição e a ordem porque, no fundo, todos nós somos assim, anjos tortinhos.
Por que tememos caos, afinal? Nós nos estruturamos demais porque temos pavor de que a realidade fuja ao nosso controle. A sensação de que podemos nos prejudicar com a instabilidade da vida ou de perder a quem amamos por causa de acontecimentos imprevisíveis mina nossa segurança. Por isso, gostamos tanto da rotina, do que é linear e previsível, do que não muda. Um pouco disso é essencial para nossa saúde psíquica. O problema acontece quan do nos esquecemos de que o excesso de controle asfixia e pode acabar com todas as chances de mudança em nossa vida. Porque a mudança tem mais facilidade de ocorrer exatamente onde não há um espaço estruturado.
Talvez a gente não se preocupasse tanto em manter a ordem se aprendêssemos um pouquinho sobre a Teoria do Caos, uma teoria científi ca formulada em 1960 pelo meteorologista americano Edward Lorenz. Ela diz que há uma ordem intrínseca até mesmo no caos. O que nos parece caótico, como o turbilhão de água numa cachoeira, por exemplo, tem um padrão, uma sequência. Eles são difíceis de serem definidos, mas existem. “A Teoria do Caos, na verdade, deveria se chamar teoria da ordem oculta do caos”, diz Salete de Oliveira Buffoni, que ensina esse difícil tema na Faculdade de Engenharia da Universidade Federal Fluminense.
É exatamente o argumento que a maioria dos bagunceiros emprega: de que há uma ordem na bagunça que só eles conhecem. O administrador de empresas Luiz Eduardo divide as pilhas de papéis na estante ou em cima da sua mesa por estratos. Olha de lado e sabe exatamente de onde tirar a pasta que quer. As roupas que ficam em cima da cama (até um dia ele resolver arrumar os armários) estão separadas por um critério inconfundível: são as mais limpas. Mesmo estando seguro de que a sua opção é a mais correta, ele prefere não se identificar: não seria bom para a imagem de alguém que administra empresas, embora a administração com uma margem de caos incluída seja a mais nova onda nos Estados Unidos.
“As pessoas e as empresas desorganizadas se comportam de maneira diferente das organizadas, uma diferença que pode oferecer vantagens. Um sistema metódico e organizado precisa combater constantemente a aleatoriedade. Quando essa inevitavelmente consegue se infiltrar, o sistema fica confuso. Por outro lado, ser aberto a certo nível de aleatoriedade possibilita que esta trabalhe a nosso favor”, dizem os autores do livro Uma Bagunça Perfeita, Eric Abrahamson e David H. Freeman. Eles citam, como exemplo (um tanto maléfi co, por sinal), a organização terrorista Al-Qaeda, que, por ser não hierárquica, organizada e previsível, é capaz de driblar com agilidade os sistemas organizados de segurança americanos.
Nossa ilusão em querer a vida (ou o espaço dentro de casa) sob controle ficaria seriamente abalada com a outra proposição da Teoria do Caos: de que mudanças mínimas, mas contínuas, podem causar transformações gigantescas. Lorenz exemplifi cou essa parte da teoria com o título dramático de um dos seus mais famosos artigos: Previsibilidade: Pode o Bater das Asas de uma Borboleta no Brasil Desencadear um Tornado no Texas? Ele chamou essa correlação de forças de “efeito borboleta”. A conclusão de Lorenz é que é simplesmente impossível querer controlar todas as inúmeras variáveis que podem ocasionar uma mudança, sendo possível apenas observá-las.
Bagunca é mesmo igual a caos? Dulce Magalhães estabelece uma divisão sutil entre bagunça e caos. “Eles não são exatamente a mesma coisa. A bagunça é um estado de confusão, enquanto o caos é um estado de múltiplas possibilidades”, diz. Segundo ela, alguém que está em meio a uma verdadeira bagunça não consegue nem pensar direito, quanto mais criar. Já o caos é um estado de complexidade, quando temos muita informação, mas ainda não definimos que rumo vamos dar a isso. É quando podemos modelar a vida com esse material da forma mais criativa possível”, afi rma. Já pessoas muito sistemáticas, com comportamentos rigidamente padronizados, costumam não ter abertura para novas possibilidades, pois têm a tendência a “defender” sua forma de fazer e agir. Isso é por si só já um condicionamento. “Também para o caos há uma medida para que possamos navegar sem naufragar. É fundamental ter um preparo prévio, certa ordem estabelecida, que pode ser fruto de estudo, experiência, aconselhamento, enfi m, de algo que dê diretrizes interiores e permita que possamos lidar com o caos e não nos perder nele.”
É verdade. Pablo Picasso tinha o completo domínio de vários estilos de pintura e desenho antes de se desestruturar no cubismo. É bom deixar o caos entrar na vida, mas, para navegar com fl uidez nele, sem dúvida, é preciso certa cancha.
Como a busca da perfeicão afeta nossa vida? O estresse é fruto é uma resposta rígida, congelada, diante de uma expectativa frustrada. “Toda expectativa é um mapa e a realidade é o território. Se na prática as coisas não saem como a gente quer, não adianta se aborrecer e dizer que a realidade está errada e o mapa é que está certo. Precisamos imediatamente atualizar o mapa e perceber que é com essa nova realidade que vamos lidar e assim fl uímos para o próximo passo sem estresse nem atritos”, aconselha a consultora Dulce Magalhães. Todo desequilíbrio, portanto, é consequência direta de nossa difi culdade de ajustar nossa percepção à realidade vigente. E toda doença é um desequilíbrio.
Vamos combinar uma coisa: certinhos e perfeccionistas provavelmente vão continuar certinhos e perfeccionistas até o fi m da vida, assim como os bagunceiros renitentes também irão se manter fi éis aos seus princípios até morrer. Ninguém vai mudar seu estilo por causa de uma matéria. Mas que dá para diminuir a intensidade das neuroses, isso dá. O negócio é tentar ser um bagunceiro um pouco mais arrumadinho ou um fi ssurado pela ordem mais relaxado. É aí, na busca de equilíbrio, que está o segredo. A gente só precisa se convencer de que isso nos irá trazer novas possibilidades, alegrias e oportunidades – para mudar.

LIVROS
Uma Bagunca Perfeita, Eric Abrahamson e David H.Freedman, Rocco
Manual da Disciplina para Indisciplinados,Dulce Magalhães, Saraiva

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